domingo, 15 de julho de 2012

Fatos de março

Quinta feira, 22 de março de 2012.

O dia começa antes mesmo do alarmante cantar do galo citadino imaginário.

A cidade pequena que não se preparou para ser grande, estremunhada, abre os braços para se espreguiçar e acolher os milhares de corpos que se cruzarão, sem se tocar profundamente durante todo o dia.

O café é rapidamente improvisado: aveia com leite, mamão e uma colher de mel; uma banana média; duas fatias de pão integral e dois ovos cozidos em longos sete minutos.

Um banho gelado para contribuir no despertar forçado.

Uma última contagem cuidadosamente neurótica põe em ordem o que já havia se ordenado desde a quinta contagem já desnecessária: pode-se enfim sair em busca de mais um dia.

O ônibus, assim que chega apinhado de corpos que só se tocarão de forma superficial, perde a beleza das conduções das novelas de época.

Entre paradas, embarques e adeus silenciosos o caminho dos compromissos que devem ser cumpridos vai sendo, aos poucos, desbravado.

Chega-se ao lugar combinado como se estivesse chegando a um chá da tarde inglês.

O excesso de pontualidade proporciona um confortável momento de observação, mesmo diante da falta de espaldar dos assentos das praças públicas.

A vida, com calma, irrompe e se revela como num telão da sétima arte.

Dois homens, trajados com extremo formalismo, sob um sol de oito horas já um pouco escaldante, negociam silenciosamente o preço do dia, da vida e do futuro.
Uma jovem e bela garota, sentada na beira de um canteiro de plantas sem flores, parece estar ansiosa aguardando por um amor, talvez apenas por uma amizade, ou até mesmo pelo próprio tempo.  Enfim ela se vai, sem preencher o vazio da expectativa.
Ao lado, um rapaz, já bem crescido, lê, sem rir e com evidente desânimo, um livro com piadas de certo enredadas pelas desgraças das minorias.
Sob a sombra de uma árvore de galhos que tentam agarrar a luz do sol, três homens discutem com uma vendedora de bolos e café sobre os melhores jogadores e times do futebol brasileiro.
Um mouro atrasado arma apressadamente sua barraca na intenção de recuperar o tempo perdido e ganhar alguns trocados amolando tesouras, alicates e outros metais não mais tão cortantes.
De repente, uma mulher perdida questiona sobre a localidade exata da secretária da igreja. Acho que só São Francisco poderia guiá-la com segurança.
De repente, um homem sai pela porta da igreja e encerra uma conversa ao telefone dizendo amém.
E São Francisco, com as mãos levantadas para os céus: tudo vê, tudo observa, tudo olha e por todos nós ainda roga, animais (ir)racionais que somos.