terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Atestado de amor eterno

Duas lágrimas de alívio foi o que vi verter sobre a folha de papel na qual uma falta profunda se mantinha, por anos, registrada com visível carinho e emoção. E eu, desatencioso e inexperiente com as dores e prazeres do amor, levei longos minutos para me dar conta de que mesmo num pedaço de papel poderia estar, incrivelmente, simbolizada nossa grande dificuldade em lidar com a finitude, ou talvez simplesmente nossa capacidade de preservar vivas em nossa memória as lembranças daqueles com quem um dia compartilhamos a dor e a delícia de pertencermos uns aos outros e ao mundo.
Maria Rufina havia me ligado meio esbaforida e aflita. Ela não conseguia de modo algum encontrar o atestado de óbito do marido morto já fazia alguns anos. Pedi então que ela me aguardasse para que juntos continuássemos na pungente busca. Quando cheguei a casa de dona Maria, ela de imediato pegou em minhas mãos e me levou até uma caixa de sapatos que era utilizada como caixa de memórias ou guarda lembranças. Em evidente desespero, Maria Rufina me informou pela segunda vez que não fazia a mínima ideia de onde tinha ido parar o atestado de morte do marido.
Com calma vasculhei a caixa de sapatos e revirei com cuidado os papéis que lá dentro estavam. Bem no fundo, grudado a outra folha que não recordo mais qual era seu conteúdo, estava o atestado, intacto e em silêncio. Levantei sem emoção a folha de papel em minhas mãos e anunciei a dona Maria que o documento outrora perdido estava enfim novamente disponível a seu olhar e toque. Maria Rufina então, de maneira por mim inesperada, e até um tanto brusca, tomou o atestado de minhas mãos e desatou em doces lágrimas de carinho e saudade.
Por mais uma vez eu fora tocado de surpresa pela graça e força do amor.

Dona Emília



Emília Silva é o nome da simpática e carismática senhora que tive a oportunidade de conhecer durante uma das muitas viagens de ônibus que costumo fazer a caminho da minha faculdade; sim, é de fato sempre uma longa e, por vezes, cansativa viagem. Porém, nesse dia minha jornada pendular diária foi (in)felizmente encurtada e agraciada pela surpreendente e inesquecível companhia da doce dona Emília.
Em geral, diz-se que gentileza gera gentileza (brinco que gentileza, às vezes, só gera abuso de boa vontade!), mas descobri com dona Emília que o hábito de ser gentil pode render sim bons amigos instantâneos e, com surpresa, boas conversas enredadas por poesia popular.
Minha gentileza do dia foi ter oferecido meu assento à dona Emília (o uso da crase reflete a intimidade mútua logo gerada entre nós). Dona Emília agradeceu, sentou-se e, em seguida, começou a revelar certo incômodo; logo imaginei que fosse por conta do calor (São Luís tem se mostrado uma ilha do calor, não do amor!). Indaguei-lhe então se passava mal, o que ela me respondeu de modo afirmativo. Porém, acredito que dona Emília estava, em realidade, apenas em busca de uma palavra amiga para que pudesse, logo após, contar um pouco da sua história e ler os seus encantadores e nostálgicos poemas.
Em poucos minutos dona Emília sentiu em mim confiança suficiente para desvelar alguns eventos da sua vida (o que só endossa o uso apropriadíssimo da crase). Soube sobre sua rotina como estudante, sua consulta médica e até cirurgias vindouras; contou-me ainda sobre sua profissão de costureira e, o melhor, sobre sua vocação e talento de poetisa.
Quando ela me revelou ser poetisa, minha curiosidade floresceu, bem como um largo sorriso que não saiu em nenhum momento do meu rosto atoleimado; logo deixei de imaginar que estava prestes a vivenciar só mais uma daquelas conversas de ônibus, na qual o meneio constante da cabeça reflete desconforto e indiferença. Dona Emília era, sem dúvida alguma, uma passageira incrivelmente especial.
De imediato, perguntei-lhe se costumava andar com algum poema na bolsa, num caderninho de anotações ou algo do tipo. Dona Emília respondeu que não, mas, me confortou e afagou o coração quando me disse que poderia recitar alguns poemas de cabeça. Como demonstração de sua completa lucidez e desenvoltura, dona Emília dividiu com um estranho conhecido duas de suas criações poéticas: a primeira delas era sobre o Titanic; e a segunda sobre sua terra natal, Cururupu, no interior do Maranhão.
Não lembro ao certo dos versos, mas em um deles dona Emília teceu belas e inesquecíveis reflexões sobre a perda dos sonhos e dinheiro. Com uma voz num tom baixo, como se estivesse me contando um importante segredo, dona Emília declarou que quanto mais se perde sonhos, mais sonhos se tem; o que já não acontece com o dinheiro, uma vez que vinténs perdidos são somente vinténs perdidos.
Antes de trocarmos telefones (nunca havia dado antes meu telefone a uma mulher) e nos despedirmos, dona Emília fez uma ressalva acerca das verdades tecidas nos versos declamados; revelou-me que ali havia apenas verdades particulares. Eu então, de imediato, também em voz de segredo, a repreendi e disse-lhe que a verdade do poeta era inquestionável; afinal, nela está contida uma evidência vivencial puramente autêntica, mesmo que imaginativa.
Dona Emília se foi, porém não sem antes me surpreender com mais um presente; ela retirou da bolsa duas balas pipper, sabor hortelã - uma para ela e outra para mim. Minha velha amiga dona Emília, com poesia e balas de hortelã - num único dia, ou numa única viagem que tinha tudo para ser apenas mais uma - me permitiu, de e com graça, não só um encontro delicioso com palavras rimadas e repletas de beleza e história, mas também um reencontro aprazível com o sabor sem igual da minha infância. 
Muito obrigado pela gentileza, dona Emília.