sábado, 22 de janeiro de 2011

Antenadas

Elas eram muitas. Centenas... talvez milhares! E brincavam de roda em volta do cesto verde de lixo. O cesto era vazado - rodeado por quadriláteros que por pouco não eram retângulos - e tinha um forro improvisado com um saco plástico, o que impedia que elas tivessem a entrada facilitada, sem fazer grandes esforços. Mas esse não era um grande problema para elas, pois embora pequenas fossem, eram fortes e pareciam não se incomodar em usar da força que tinham. Diziam que uma apenas possuía força suficiente para sustentar seu próprio peso alguns números a mais, porém certamente elas não o sabiam, se não já teriam se organizado e feito um espetáculo de equilíbrio e força na busca de alimento. Faltava-lhes razão para tal ato. Porém, organização elas tinham de sobra. Organização por instinto insetal, talvez.

Todas marchavam em um ritmo meio acelerado e vinham de um mesmo lugar por um caminho invisível. Às vezes elas se encontravam de frente, mas acidentes nunca aconteciam. Elas não eram atrapalhadas, mas sim organizadas e atenciosas. Nunca se apaixonariam depois de encontrões.

Porém apresentavam hábitos alimentares extremamente paradoxais. Comiam verde - verde da cor do cesto -, mas comiam o branco açúcar também. Faltava-lhes instinto para entender o mal que tal alimento proporcionaria a elas. Razão não as impediria de tal ato. E sem instinto suficiente, elas continuavam na sua busca ávida por açúcar industrializado.

Durante toda a manhã permaneceram empenhadas em tal tarefa. Não paravam nem para se alimentar com o açúcar recolhido. Desde o café em jejum. E a hora do almoço já se aproximava de seus estômagos vazios. Mas como assim? Não o comiam? Aí estava então a resposta para a ausência de relatos sobre formigas diabéticas ou obesas. Mas será? Será que realmente não comiam o açúcar? Será que quando o carregavam não se deixavam atrair pelos finos flocos que flutuavam sobre suas antenas? Não eram açucólatras? Ou glicólatras? Ou formigólatras? Será que não era o fato de trabalharem de modo incessante que contribuía para a queima total da glicose adquirida?!

As únicas certezas eram que apesar de minúsculas, elas tinham sombras. Sombras que as atribuíam uma ilusão óptica natural. E que marchavam em filas desalinhadas com uma organização propriamente delas.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Brincadeira de Criança

Portava-se como um homem. Másculo e viril. Andava como se o chão sob seus pés fosse ondulado, e não plano. Os braços se multiplicavam em um balançar extravagante. Uma extravagância varonil. Nas mãos carregava um aparelho que no momento fazia as vezes de uma radiola, e nas costas trazia uma mochila colorida, que tinha impresso em um de seus vários compartimentos o dizer: "Go Play Boy!".
He was just a little boy...

Donas do mundo

Embora não fosse uma mulher de posses, todos a chamavam de Dona: Dona Toca.

Na verdade, todas as mulheres são donas quando se tem respeito pelo próximo que é próximo de outros a mais tempo. Porém, chamar homens de donos não seria respeitoso, seria no máximo engraçado. Apenas mulheres são donas. Homens são só senhores e economicamente eles têm se tornado apenas seus.

Seu Pedro, Seu João... - todos delas. Dona é a Maria, a Joaquinha... A Dona Toca.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Insetos

Bastava que um daqueles minúsculos insetos pousasse em qualquer parte de seu corpo, para que Gino desconfiasse da validade de seu segundo banho do dia.

A vontade que tinha era de levantar os braços e se cheirar. Cheirar o corpo todo como um cão. Seria tão bom ser um cão em momentos como esses. Afinal, cães não precisavam mostrar nada a ninguém, muito menos abster-se de suas vontades.

Apesar do desconforto e do medo de que estivesse chamando a atenção, Gino observou que as pessoas ao redor pareciam não estar sentindo cheiro algum e aparentavam também não perceber suas tentativas, todas sem sucesso, de expulsar os visitantes indesejados. Talvez estivessem apenas fingindo, e nisso eram profissionais.

Gino balançava a cabeça como se ouvisse: "Não faça movimentos bruscos!". Mantinha os braços colados ao corpo na tentativa de evitar que o odor aparente pudesse escapar. Gino havia se tornado uma estátua, e se a viagem fosse mais longa e ônibus fossem conversíveis, certamente pombos teriam pousado em seu ombro e feito suas necessidades fisiológicas. Pombos não fariam isso de propósito é claro, e jamais falariam necessidades fisiológicas.

Quando chegou ao seu destino, Gino se deu conta de que não havia cheiro algum. Nenhum fedor! Tudo tinha sido apenas uma fatalidade. E fatalidades costumavam pousar em seu corpo, sobretudo, em verões travestidos de pseudoinverno.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Milagres existem

Bebia água como se estivesse de ressaca, mas nunca havia colocado uma gota de álcool na boca. Evitava até perfume.

Era o primeiro domingo do ano. As ruas ainda estavam desertas, mas Atécio estava de pé, a caminho da igreja. Apenas o ar o acompanhava. E o ar era Deus.

De repente, Atécio - que era saudável como um atleta - foi atingido por um defunto que estava marcado para morrer de cirrose. Atécio não teve mais fé nem mesmo para dar um último suspiro, mas em seus olhos meio abertos e meio fechados estava estampada uma admiração: a não sobriedade sempre mira os bons.

Apesar da infelicidade, parecia que aquele homem esparramado no chão havia visto um milagre. Era como se mirar sem ter reflexos fosse tão inacreditável quanto andar sobre as águas.

Atécio havia perdido a vida sem ter sido abençoado.

Atécio havia perdido a missa.