sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Maca 03

Era mais uma daquelas tardes tumultuadas de visitas em um hospital público da cidade. E das três às quatro da tarde, familiares, amigos e crédulos fieis eram autorizados pela diretoria do hospital a caminhar pelos corredores e procurar por seus irmãos de sangue e de solidariedade, a fim de dar-lhes força e esperança, já que as suas haviam sido enfraquecidas ou expiradas pela não condição de saúde e até mesmo pelo devastador poder dos medicamentos, em especial o dos antibióticos.

Cada paciente, em meio a vivência de sua dor física, psicológica e espiritual, era visitado por até três amigos; amigos que eram mais do que do peito e mais do que qualquer amigo guardado por sete chaves apenas musicais. Porém entre todos aqueles corpos, que diante da doença faziam-se sentir de forma mais evidente - às vezes, até mesmo esquecendo que além do corpo há um universo a ser deslindado -, havia um que, em seu canto de solidão, permaneceu como um secular solitário de pedra preciosa, já sem brilho e com valor relegado. Ele era único e singular; nele de plural só havia o número da maca que ocupava: maca três. E mesmo estando bem próximo da porta por onde os visitantes esperançosos adentravam, não foi visitado pelos seus. Ninguém o visitou, senão os amigos instantâneos da eternidade. Ninguém se lembrou dele, ou ninguém nem sequer havia para tê-lo na lembrança. E amigos e familiares de outros hospitalizados, em excesso de número, e também em um excesso de fraternidade e insensibilidade, diziam astuciosamente conhecê-lo, só para poder entrar no hospital, já que cada paciente estava autorizado a receber somente três visitas por dia.

Mas aquele paciente solitário não se deixou entristecer ou, pelo menos, não permitiu que, quem ao seu redor estivesse, percebesse em seu rosto amarelo e feio as marcas de um possível abatimento. O ar de tranquilidade e calmaria que o olhar e os gestos do ocupante da maca de número 03 transmitiam eram gritantes; tão gritantes que o fato dele ter lanchado duas vezes soou como uma compensação para a ausência de visitas. Era como se a gula, embora pecado capital, fosse a única arma disponível para que ele pudesse mostrar ao mundo o alcance do seu poder.

O horário de visitas chegou ao fim. Os amigos e familiares, com certa relutância, foram deixando aos poucos os quartos e corredores do hospital. Os pacientes, já todos anestesiados, foram paulatinamente sendo aliviados de suas dores, podendo enfim se entregar ao sono e aos sonhos de célere cura. E o paciente faminto, pecador e poderoso - que pela falta de leito permaneceu na maca até receber alta - dava junto aos outros sobreviventes, depois de ter sido o único (talvez em toda a história daquele hospital) a lanchar duas vezes, adeus a mais um dia de luta.

O tumulto então se desfez. O silêncio mais uma vez voltou a reinar. E o paciente não anônimo e de nome apenas desconhecido adormeceu depois de ter tomado dois copos de suco e comido seis bolachas, três doces e três salgadas.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Sóbrios de culpa

Era um dia de casa cheia. E ao redor homens e mulheres, todos maiores de 18 anos, dançavam e riam à toa com seus copos de bebida nas mãos. Corpos ébrios caminhavam por todos os lados e cambaleantes e sem destino se perdiam num ambiente ao ar livre, onde os únicos limites eram o mar e as próprias pessoas com pouca ou nenhuma coordenação motora.

Apenas o bar era lugar ao qual ainda se podia fazer referência e era também, ao mesmo tempo, e estranhamente, o lugar que levava todos, ali presentes na ausência de seus sentidos e reflexos, a perder o pouco da consciência que ainda lhes restava. Comportavam-se instintivamente, bem como peixes adultos que retornam ao local em que nunca estiveram antes para enfim se reproduzir e multiplicar o mistério da vida. E, assim, a capacidade humana de inebriar-se em álcool era a confirmação para o fato de que permanecemos, ao logo de toda a vida, na busca não deliberada de nosso desiderato ao contrário.

De repente, em meio a balburdia compreendida como festa, num átimo de segundo, dois homens, completamente sem norte nem sul, se esbarraram e se encararam sem nem sequer deixar que os olhos se notassem. Mas a incapacidade de fixar o olhar não foi, de modo algum, um empecilho para que se situassem e tentassem, em seguida, através de seus poucos sentidos ainda preservados, se entender e chegar a conclusão de quem ali era o culpado; àquele cujas pedras do castigo deveriam ser anunciadas e, seguidamente, evitadas diante de nossa (in)consciência da trivialidade do pecado.

Os homens continuaram a se olhar da maneira que lhes era possível. Olharam para o chão já coberto pela cerveja que havia começado a se converter em espuma em neve. Em seguida, mais uma vez, puseram os olhos em direção ao que para eles eram vicariamente os olhos da mais verdadeira inocência; era como se buscassem um culpado em silêncio e na escuridão. Mas parecia não existir, pelo menos não em princípio, culpados num desastre involuntário provocado por uma escolha, aparentemente, também sem voluntariedade. E de fato não havia culpa por parte nem de um nem de outro; ambos eram completamente inocentes. A falta de culpa era a única que não havia sido afetada pelo álcool; e isso era o que fazia deles homens inteiramente sóbrios de culpa. E assim - sem culpa nem culpados - não só eles, mas todos os outros ao redor estariam certos de que seria, pelo menos até que as vítimas fossem apenas copos descartáveis de cerveja.

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

11

A universalidade matemática desconhece a grandiosidade das dimensões do universo. Até para os matemáticos há o instante do pensamento sem valor aproximado. E nem sempre está ao alcance da razão humana arredondar o infinito à direita da vírgula. A razão é aquém da verdade de todos os dias; é como o zero à esquerda com seu valor estranhamente subestimado.

Prescindir da razão é poder solver problemas do princípio, meio e fim. E isso antes mesmo que os dois pontos, que antecedem o pensamento ilógico, sejam pronunciados pela boca aparentemente convicta do professor; professores, em especial os de matématica, que só se mantêm ainda como seres reais de instabilidade apenas por não terem deixado de findar o trivial "Resolva o problema" com singelos dois pontos.

1+1=2?

O resultado de 1+1 pode ser por toda uma vida somente 1+1. A união em um só nem sempre é possível, pois coadunar-se é perder-se; é ter que abdicar do que é próprio para poder se engastar no que pertence ao outro. Um encaixe sem brechas, nem mesmo para o penetrável ar, que é 2. Ser 2 em 2 é deixar de ser 1 para ser 2 em 1; é ser conteúdo em forma e sofrer em romance.

Mas 1+1 pode ser 11. E, embora menos aproximado, esse parece ser o resultado mais adequado. Estar ao lado, apesar de menos romântico, é ter sempre como resto o respeito; é não ter um único padrão, mas ter o desvio como padrão sempre possível. Estar ao lado é a garantia de que a perda pode ser menos dolorosa. Ser 1 ao lado de 1 é imbricar-se e ao mesmo tempo ter a oportunidade de preservar a preciosa unidade que é característica indissociável de cada um de nós.

terça-feira, 26 de julho de 2011

O acidente matemático

Puxou a perna, seria perna?, da barra da razão. Pois pensava que esta era a raiz que abrigava o denominador, ali tornado completamente incomum.

Impressionou-se. Filosofou. E lembrou-se que, embora não parecesse, a matemática também era uma filosofia.

Em seguida, voltou a calcular, ou melhor, filosofar com números e sinais. E naquele seu empreendimento caracterizado por uma peculiar exatidão insólita, a calculadora mais o atrapalhava do que ajudava – ela incrivelmente o substituía no filosofar. E isso porque quando tinha uma calculadora em mãos, até o resultado eterno de 2 + 2 se enchia de complexidade científica.

quinta-feira, 16 de junho de 2011

A vírgula que me falta


A vírgula é um ponto que queria ser mais que um ponto e acabou se tornando uma estrela cadente.
A vírgula são dois pontos que resolveram não soltar mais as mãos para unidos fugir pauta a fora, assim como eternos apaixonados.
A vírgula é um apóstrofo que, embora tenha pavor de altura, teve coragem suficiente para se por diante daquilo que a fazia tremer na base.
A vírgula é um ponto continuando que pensava não ter mais o que dizer até que percebeu que somente parou para, em seguida, dizer um pouco mais.
A vírgula é uma interrogação que por audácia estufou o peito e assoprou, não para destruir, mas sim para construir. Construir a partir de uma pergunta.
A vírgula é uma ingênua exclamação que acreditava que tamanho era documento.
A vírgula sou eu: ser de linguagem convencionada não totalmente compreensível.

terça-feira, 31 de maio de 2011

Consequências de Tiquê e Autômaton

O que faço eu aqui? A tal interrogação não me cabe questionar, apenas simbolizá-la de forma arbitrária com um coração despedaçado ao meio.

Da outra metade do coração fisiologicamente adulterado restou apenas uma gota do menos puro sangue, sem qualquer conteúdo plasmático. Uma gota não sanguínea preenchida pelo que se tem de mais vazio no fundo de uma folha de papel em branco: um buraco cheio de vida que se torna ainda mais vazio com a ajuda das palavras. Palavras que, em aparência, dizem muito, mas que, em verdade, dizem nada; ora por não perturbarem a calmaria do ar, ora por não serem capazes de informar, apenas silenciar - um silêncio não mudo que camufla a falta, aquilo que faltou ser dito no que, de fato, nunca foi dito.

Prezo pelo não dito. E não, nunca!, me pronunciarei acerca do que lhe falta - faltam-me palavras para tanto. Silencio então. Calo-me. E fico a espreita de uma palavra ainda a ser inventada. Espero somente não ter que aguardar por muito, pois meu tempo já é ampulheta com grãos não mais submetidos a gravidade e a entrega da atividade é daqui a pouco.

Obs.: ao real nada falta, mas, por outro lado, à expressão do real, através de nossos significantes, falta e sempre faltará alguma coisa.

domingo, 10 de abril de 2011

Amizades de rua

O mundo da vida está nu e, sem pudor, avidamente revela o que há de mais interno em suas entranhas.

Em um fim de tarde abafado, ao arregalar os olhos de cansaço, fui repentinamente vítima feliz de uma cena não cinematográfica de amizade. Eram dois meninos, filhos da rua, que revelavam, sem exibicionismo algum, possuírem laços fortes e aconchegantes de completa união. Meninos, órfãos de pai e mãe, que decerto haviam aprendido somente com o mundo o valor de estar perto, de pertencer a.

Naquele fim de tarde já sem crepúsculo, em que tudo parecia já ter acontecido, havia ainda uma surpresa prestes a me assustar de alegria, bem como quando criança, se aprende com o palhaço a ter medo seguro da felicidade repentina. E foi em um transporte coletivo, caixas retangulares de lata movidas à surpresa, onde eu quase sempre me surpreendera apenas com a minha convenção ferida, que naquele dia estava para mim reservado um ferimento bem mais profundo, um ferimento cuja cicatriz me encantaria para todo o sempre. E eu nem sequer podia imaginar que estava a poucos quilômetros de me tornar telespectador privilegiado de uma amizade que nunca ficaria à venda, graças a seu imensurável valor; e menos ainda que estivesse a poucas paradas de ter a oportunidade de ser a testemunha ocular que, mais tarde, seria capaz de confirmar, diante de um júri já desacreditado, que do esquecimento social a amizade é ainda um sobrevivente ileso.

(...)

O ônibus parou mais uma vez, e o que parecia ser só mais uma simples parada - para que um outro passageiro pendular, com sua história para sempre desconhecida, pudesse descer e se livrar do desconforto de estar perto demais sem nem sequer pertencer - tinha, na verdade, a força e poder suficientes para parar o mundo. O ônibus não havia parado ali somente para deixar que uma história partisse sem ter sido contada. O ônibus também parara para que se pudesse revelar, aos olhos de quem permitisse, o desespero de não se estar perto quando se pertence a alguém. O ônibus havia parado para que, pela porta traseira, embora proibido o embarque, um garoto esperto expressasse, através de seu rosto e de suas mãos que trêmulas logo começaram a solicitar a parada imediata, um desespero mudo ao perceber que a porta havia se fechado antes que seu amigo conseguisse estar ao seu lado na grande aventura. E séculos pareceram ter se passado até que o ônibus parasse novamente e permitisse ao menino esperto resgatar o outro não menos esperto.

Não sei como o reencontro se deu. Só sei que a viagem com destino certo teve ali seu rumo norteadamente alterado.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Próxima parada

O ônibus estava extremamente lotado. Apenas os passageiros sentados, e em conforto parcial, somavam o número indicado pela placa vermelha de letras e números brancos. Aqueles que em pé se encontravam nem sequer precisavam se segurar nas barras, pois diante de qualquer freada, mesmo brusca, não havia para onde cair. Newton certamente se veria obrigado a reformular sua primeira lei, caso tivesse tido tempo de viajar num ônibus como aquele.

Além de desconfortante, a viagem era longa. E se tornava ainda mais longa a cada metro percorrido e a cada atitude folgada de um passageiro nonsense. Porém, nada disso era mais desconfortante e assustador do que colocar, de forma involuntária, o polegar sobre um botão em que a palavra PARE se encontrava impressa. Ali estava mais que uma palavra. Ali se encontrava um símbolo que poderia representar uma parada sem motivo; uma parada capaz de atrasar ainda mais uma viagem de volta ao lar, um beijo ou um abraço de saudades. E ali estava também o exemplo de que a involuntariedade poderia sim se transformar em um ato voluntário cheio de culpa.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Eu acredito em uma estrela

Abrir as janelas, logo pela manhã, sempre perturbava o dançar sincrônico das partículas de poeira que seguiam diagonalmente em direção a luz do sol.

Durante minha infância nostálgica acreditava que as estrelas pudessem ser feitas de minúsculas partículas de poeira oriundas do meu quarto. Partículas flutuantes de uma manhã de domingo; uma manhã que se apresentava através dos múltiplos fios de sol que adentravam pelas frestas da janela de madeira já meio apodrecida.

Domingo era dia de ir à missa. Nunca compreendi o porquê de NUNCA ser sempre depois da missa; não pelo simples fato de ser após, mas por ser sempre aos sábados. Eu nem sabia que aos sábados havia missa, muito menos que as quartas e sextas também eram dias possíveis de se visitar o Senhor de modo oficial. E talvez continue sem saber que todos os dias, horas e segundos são oficiais. Afinal, saber nem sempre é saber de fato. Tomar uma verdade como sua não significa saber.

Roupa apropriada, horário exato, silêncio, atenção... Tudo o que dificilmente se faz dentro de uma igreja quando se tem apenas 1/3 da idade com que Cristo morreu. Tais exigências eram feitas com todo carinho celestial possível. (...) Bom dia! Bom dia!! Adorava o segundo bom dia proporcionado pela falta de ânimo do primeiro que praticamente não havia sido correspondido ao padre. O bom dia duplo era também um aviso de que a hora de calar havia chegado. E de que era hora de ouvir as pronunciações de Deus intermediadas por um português engraçado, um português brasileiro com resquícios do de Portugal.

E lá estava eu. Todos os domingos. Camisa, bermuda, sapato. Camisa, calça, sapato. Silencioso, atencioso. A missa começava só às 08:30, mas trinta minutos antes eu já estava lá, de prontidão à espera de Deus. Trajado em meu figurino divino e divinamente comportado. Sentava sempre em uma das primeiras fileiras para ouvir sobre a criação do mundo, dos homens e principalmente das estrelas. Mas o padre nunca falou sobre as partículas de poeira do meu quarto, nem sobre a criação das estrelas em específico. As estrelas eram sempre coadjuvantes do Universo; e este, coadjuvante de Deus. Deus não era coadjuvante de nada, nem de ninguém. Deus era sempre o principal.

A partir daí descobri então que era Deus quem havia assobiado as partículas de poeira da Terra para criar as estrelas. Era Ele que assobiava e atraía a poeira do meu quarto; quarto compartilhado por irmãos, uma mesa, uma geladeira e um fogão, mas que, de certa forma, era meu em particular.

E Deus havia criado o Sol também. Deus criou o Sol com assobios.

Nunca aprendi a assobiar a partir da expulsão do ar, sempre o fiz ao contrário, o sugando. Mas aprendi sozinho que Deus assobiava como eu. Ele havia assobiado e atraído a poeira da Terra. Assim, Deus havia moldado as estrelas, que embora fossem belas do jeito que haviam sido criadas – pontos de luz branca ou amarela –, foram culturalmente adulteradas, assim como os corações.

As estrelas nunca caíram do céu. Nunca caem. Elas são maiores que a terra, mas isso não me fez deixar de acreditar que um dia encontraria uma estrela mergulhada em um lago. Dentro de um dos muitos açudes que passavam quase que despercebidos em minhas viagens a Santa Helena. Os motoristas já deviam ter apreciado muito aquela paisagem, e talvez fosse por isso que iam a toda velocidade. Mas para mim tudo era muito novo. E eu também era muito novo para ter a atenção de um dos motoristas da empresa Continental.

Descobrir que o Sol era também uma estrela foi iluminador. Estrelas não caíam só porque eram maiores que a terra. Estrelas não caíam porque eram Deus. Deus então podia ser vários, e isso me permitia deixar de acreditar em um deles. Isso me permitia não acreditar mais na estrela maior que iluminava a muitos. Isso me permitia não compartilhar de um mesmo Deus. Isso me permitiu apontar para uma das estrelas, a menor delas possível, e dizer: “A partir de agora Você será o meu Deus!”.

E sobre tal possibilidade o padre nunca nada dissera.

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Verdades de barro

Não sou avesso aos padrões convencionais. Apenas encontro-me de um lado oposto a eles. Sei que isso é ser avesso, mas aversão e contrariedade sempre me vêm à cabeça quando me refiro a avesso - portanto, não o sou. Sou avesso sem sê-lo, o que, de qualquer forma, já me faz ser o lado oposto da camisa.

De convencional tenho somente a normalidade do corpo e o suposto equilíbrio mental. Porém não chego a ser uma maçã no escuro. Meu interior não é menos fino que minha casca. Aprendi apenas a disfarçar, tal como um profissional. E nem preciso dizer quem foram os grandes mestres.

A vida ensina. É a escola de alfabetizados e não instruídos. Porém, fá-lo de um jeito que nos machuca. A verdade cá ministrada, nossa verdade!, é inventada. E tentar reinventá-la significa adentrar em um dilema em que, ao fim, os únicos feridos somos nós mesmos. Tentei (e ainda tento) reinventar a vida; de um jeito tímido, confesso. Mas o meu dilema foi anterior a mim, assim como a linguagem precede o homem. Meu dilema nem era um dilema de verdade, pelo menos não para mim. Não tentei de início reinventar o mundo, pois minha verdade parecia não ter impedimentos para ser aquela (de fato não tinha nem tem). Mas os outros me mostraram que a minha verdade era uma grande mentira diante do Deus dos homens. Os outros me mostraram que eu estava tentando reinventar o que havia sido modelado e criado em barro.

Os outros, sempre os outros...

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Além da Onomástica

Pronunciava uma mesma palavra repetidas vezes. E não importava quão simples e rotineira tal palavra fosse, ela sempre perdia seu significado. Era inevitável. Imagem e ideia sempre se desencontravam num vazio abstrato, que o assustava e o fazia sorrir como se não tivesse dentes. Era então preciso, mais uma vez, recorrer ao dicionário de bordas já escurecidas, bem escurecidas.

Era comum também que, além das palavras, ele mesmo se perdesse. Criava ondas no ar através das inúmeras letras de seu nome. Nove letras eram demais para uma pessoa só, mas unidas tornavam-se mais próximas de seu tamanho real. E real não era realidade, nem tampouco realeza. Real era o que nem conhecia ainda, porém era o que tentava desvelar através de seus solilóquios diários. Aliás, falar sozinho já havia se tornado um problema. Quem o visse o chamaria de louco. Durante a noite, pensar se transformara em pensônia (pensamentos + insônia)! Porém ele sabia que pensar era necessário. Afinal, livros com nomes de bebês não podiam ser tidos como dicionários humanos.

Sabia também que uma pessoa nunca poderia ser apenas um nome. Ele era além de um nome e sobrenomes. Não era ilustre, apenas desconhecido. Não era de uma família bastarda, era apenas amado. E o amor era [é] tudo. Ele não era um nome e sabia que quem se deixava medir por um simples nome, não se dava oportunidades de se conhecer por completo. Quem se deixava medir por um nome, não era ninguém. E Deus era a prova disso.

ALEGRIA

Ana não era Ana, era Bárbara. Porém suas condições de saúde não permitiam que a chamassem por seu nome de registro. Ana, anA, Ana... Seus dias estavam sendo como seu nome. E sua bravura já havia expirado há muito. Mas ainda era possível notar que existia um pingo de esperança em seu sorriso fino. Ela não tinha forças para praticamente nada, apenas para virar levemente o rosto em direção a tv. Novelas pareciam ser ainda uma de suas únicas alegrias.

Assim que chegou a cidade, Ana foi imediatamente submetida a uma bateria de exames. Exames apenas. Imediaticidade era o que realmente não se podia esperar dela. E sua bateria parecia já estar em um daqueles simbólicos minutos de silêncio, à espera de uma marcha fúnebre. Mas embora as chances da insurreição de Bárbara fossem poucas, era preciso manter os pingos de esperança encharcados para que muitos rostos não se tornassem úmidos mais tarde. Era preciso fingir que os pingos eram de tempestade, e não de garoa.

Todos os exames demandavam de Ana a força e bravura que haviam ido com Bárbara. Eram muitas exigências para uma mulher que havia sido exigida demais quando jovem e que não soube dizer não, apenas sim, a tudo e a todos. Nas condições em que se encontrava até ler seria pedir demais. E para que ela não dissesse mais um sim para o que não podia nem deveria, imediatamente alguém se prontificou a ler os itens impressos no papel com cheiro de hospital. As letras eram minúsculas, praticamente ilegíveis.

Entre os milhares de pontos pretos estava: VOCÊ TEM ALGUM TIPO DE ALERGIA? Lê-se ALERGIA, mas por descuido se leu ALEGRIA. Em seguida, todos em volta começaram a gargalhar, pois todos em volta sabiam que não havia ALEGRIA em Ana. Todos em volta de Ana riram de sua falta de graça. E um desgraçado era alguém em que a graça faltava. Mas Ana não era uma desgraçada, apenas não tinha graça. E até ela mesma sorriu de sua falta de motivos para sorrir. Ana achou graça onde não havia. Ana achou-se sem nem sequer ter achado a graça da Bárbara que havia perdido.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Cubículo

Marta vivia em um apartamento cujas extremidades praticamente não tinham o direito de serem chamadas como tais. Um verdadeiro cubículo, dizia ela. Em momentos de puro nervosismo, Marta exclamava em fúria: CUBÍCULO! Porém, logo percebia que gritos jamais a tirariam de sua estreita realidade. Então suspirava calmamente, como se tentasse apalpar o alívio. E depois de aliviada, Marta pronunciava mais uma vez o polissílabo que havia encontrado para insultar seu lar de uma sílaba só. Porém desta vez dizia cubículo de um modo muito suave, o que de certa forma demonstrava que realmente não estava mais com os nervos à flor da pele. Ela dizia cubículo, mas o dizia sem obedecer as leis que havia aprendido na escola. Dizia-o com uma desobediência irônica. Marta dizia cubículo como uma sobresdrújula. Marta pronunciava cubículo como uma espanhola que aprende "brasileiro".

Marta costumava encher a casa de móveis, alguns sem utilidade e/ou funcionalidade alguma. Chamavam-na até de anormal, louca. Porém, Marta havia feito de sua casa um depósito, pois aprendera que uma casa cheia quando esvaziada, parecia ser bem maior do que realmente era. Marta apreciava alargar seus horizontes e criar eco onde não havia.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Antenadas

Elas eram muitas. Centenas... talvez milhares! E brincavam de roda em volta do cesto verde de lixo. O cesto era vazado - rodeado por quadriláteros que por pouco não eram retângulos - e tinha um forro improvisado com um saco plástico, o que impedia que elas tivessem a entrada facilitada, sem fazer grandes esforços. Mas esse não era um grande problema para elas, pois embora pequenas fossem, eram fortes e pareciam não se incomodar em usar da força que tinham. Diziam que uma apenas possuía força suficiente para sustentar seu próprio peso alguns números a mais, porém certamente elas não o sabiam, se não já teriam se organizado e feito um espetáculo de equilíbrio e força na busca de alimento. Faltava-lhes razão para tal ato. Porém, organização elas tinham de sobra. Organização por instinto insetal, talvez.

Todas marchavam em um ritmo meio acelerado e vinham de um mesmo lugar por um caminho invisível. Às vezes elas se encontravam de frente, mas acidentes nunca aconteciam. Elas não eram atrapalhadas, mas sim organizadas e atenciosas. Nunca se apaixonariam depois de encontrões.

Porém apresentavam hábitos alimentares extremamente paradoxais. Comiam verde - verde da cor do cesto -, mas comiam o branco açúcar também. Faltava-lhes instinto para entender o mal que tal alimento proporcionaria a elas. Razão não as impediria de tal ato. E sem instinto suficiente, elas continuavam na sua busca ávida por açúcar industrializado.

Durante toda a manhã permaneceram empenhadas em tal tarefa. Não paravam nem para se alimentar com o açúcar recolhido. Desde o café em jejum. E a hora do almoço já se aproximava de seus estômagos vazios. Mas como assim? Não o comiam? Aí estava então a resposta para a ausência de relatos sobre formigas diabéticas ou obesas. Mas será? Será que realmente não comiam o açúcar? Será que quando o carregavam não se deixavam atrair pelos finos flocos que flutuavam sobre suas antenas? Não eram açucólatras? Ou glicólatras? Ou formigólatras? Será que não era o fato de trabalharem de modo incessante que contribuía para a queima total da glicose adquirida?!

As únicas certezas eram que apesar de minúsculas, elas tinham sombras. Sombras que as atribuíam uma ilusão óptica natural. E que marchavam em filas desalinhadas com uma organização propriamente delas.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Brincadeira de Criança

Portava-se como um homem. Másculo e viril. Andava como se o chão sob seus pés fosse ondulado, e não plano. Os braços se multiplicavam em um balançar extravagante. Uma extravagância varonil. Nas mãos carregava um aparelho que no momento fazia as vezes de uma radiola, e nas costas trazia uma mochila colorida, que tinha impresso em um de seus vários compartimentos o dizer: "Go Play Boy!".
He was just a little boy...

Donas do mundo

Embora não fosse uma mulher de posses, todos a chamavam de Dona: Dona Toca.

Na verdade, todas as mulheres são donas quando se tem respeito pelo próximo que é próximo de outros a mais tempo. Porém, chamar homens de donos não seria respeitoso, seria no máximo engraçado. Apenas mulheres são donas. Homens são só senhores e economicamente eles têm se tornado apenas seus.

Seu Pedro, Seu João... - todos delas. Dona é a Maria, a Joaquinha... A Dona Toca.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Insetos

Bastava que um daqueles minúsculos insetos pousasse em qualquer parte de seu corpo, para que Gino desconfiasse da validade de seu segundo banho do dia.

A vontade que tinha era de levantar os braços e se cheirar. Cheirar o corpo todo como um cão. Seria tão bom ser um cão em momentos como esses. Afinal, cães não precisavam mostrar nada a ninguém, muito menos abster-se de suas vontades.

Apesar do desconforto e do medo de que estivesse chamando a atenção, Gino observou que as pessoas ao redor pareciam não estar sentindo cheiro algum e aparentavam também não perceber suas tentativas, todas sem sucesso, de expulsar os visitantes indesejados. Talvez estivessem apenas fingindo, e nisso eram profissionais.

Gino balançava a cabeça como se ouvisse: "Não faça movimentos bruscos!". Mantinha os braços colados ao corpo na tentativa de evitar que o odor aparente pudesse escapar. Gino havia se tornado uma estátua, e se a viagem fosse mais longa e ônibus fossem conversíveis, certamente pombos teriam pousado em seu ombro e feito suas necessidades fisiológicas. Pombos não fariam isso de propósito é claro, e jamais falariam necessidades fisiológicas.

Quando chegou ao seu destino, Gino se deu conta de que não havia cheiro algum. Nenhum fedor! Tudo tinha sido apenas uma fatalidade. E fatalidades costumavam pousar em seu corpo, sobretudo, em verões travestidos de pseudoinverno.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Milagres existem

Bebia água como se estivesse de ressaca, mas nunca havia colocado uma gota de álcool na boca. Evitava até perfume.

Era o primeiro domingo do ano. As ruas ainda estavam desertas, mas Atécio estava de pé, a caminho da igreja. Apenas o ar o acompanhava. E o ar era Deus.

De repente, Atécio - que era saudável como um atleta - foi atingido por um defunto que estava marcado para morrer de cirrose. Atécio não teve mais fé nem mesmo para dar um último suspiro, mas em seus olhos meio abertos e meio fechados estava estampada uma admiração: a não sobriedade sempre mira os bons.

Apesar da infelicidade, parecia que aquele homem esparramado no chão havia visto um milagre. Era como se mirar sem ter reflexos fosse tão inacreditável quanto andar sobre as águas.

Atécio havia perdido a vida sem ter sido abençoado.

Atécio havia perdido a missa.