segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Verdades de barro

Não sou avesso aos padrões convencionais. Apenas encontro-me de um lado oposto a eles. Sei que isso é ser avesso, mas aversão e contrariedade sempre me vêm à cabeça quando me refiro a avesso - portanto, não o sou. Sou avesso sem sê-lo, o que, de qualquer forma, já me faz ser o lado oposto da camisa.

De convencional tenho somente a normalidade do corpo e o suposto equilíbrio mental. Porém não chego a ser uma maçã no escuro. Meu interior não é menos fino que minha casca. Aprendi apenas a disfarçar, tal como um profissional. E nem preciso dizer quem foram os grandes mestres.

A vida ensina. É a escola de alfabetizados e não instruídos. Porém, fá-lo de um jeito que nos machuca. A verdade cá ministrada, nossa verdade!, é inventada. E tentar reinventá-la significa adentrar em um dilema em que, ao fim, os únicos feridos somos nós mesmos. Tentei (e ainda tento) reinventar a vida; de um jeito tímido, confesso. Mas o meu dilema foi anterior a mim, assim como a linguagem precede o homem. Meu dilema nem era um dilema de verdade, pelo menos não para mim. Não tentei de início reinventar o mundo, pois minha verdade parecia não ter impedimentos para ser aquela (de fato não tinha nem tem). Mas os outros me mostraram que a minha verdade era uma grande mentira diante do Deus dos homens. Os outros me mostraram que eu estava tentando reinventar o que havia sido modelado e criado em barro.

Os outros, sempre os outros...

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Além da Onomástica

Pronunciava uma mesma palavra repetidas vezes. E não importava quão simples e rotineira tal palavra fosse, ela sempre perdia seu significado. Era inevitável. Imagem e ideia sempre se desencontravam num vazio abstrato, que o assustava e o fazia sorrir como se não tivesse dentes. Era então preciso, mais uma vez, recorrer ao dicionário de bordas já escurecidas, bem escurecidas.

Era comum também que, além das palavras, ele mesmo se perdesse. Criava ondas no ar através das inúmeras letras de seu nome. Nove letras eram demais para uma pessoa só, mas unidas tornavam-se mais próximas de seu tamanho real. E real não era realidade, nem tampouco realeza. Real era o que nem conhecia ainda, porém era o que tentava desvelar através de seus solilóquios diários. Aliás, falar sozinho já havia se tornado um problema. Quem o visse o chamaria de louco. Durante a noite, pensar se transformara em pensônia (pensamentos + insônia)! Porém ele sabia que pensar era necessário. Afinal, livros com nomes de bebês não podiam ser tidos como dicionários humanos.

Sabia também que uma pessoa nunca poderia ser apenas um nome. Ele era além de um nome e sobrenomes. Não era ilustre, apenas desconhecido. Não era de uma família bastarda, era apenas amado. E o amor era [é] tudo. Ele não era um nome e sabia que quem se deixava medir por um simples nome, não se dava oportunidades de se conhecer por completo. Quem se deixava medir por um nome, não era ninguém. E Deus era a prova disso.

ALEGRIA

Ana não era Ana, era Bárbara. Porém suas condições de saúde não permitiam que a chamassem por seu nome de registro. Ana, anA, Ana... Seus dias estavam sendo como seu nome. E sua bravura já havia expirado há muito. Mas ainda era possível notar que existia um pingo de esperança em seu sorriso fino. Ela não tinha forças para praticamente nada, apenas para virar levemente o rosto em direção a tv. Novelas pareciam ser ainda uma de suas únicas alegrias.

Assim que chegou a cidade, Ana foi imediatamente submetida a uma bateria de exames. Exames apenas. Imediaticidade era o que realmente não se podia esperar dela. E sua bateria parecia já estar em um daqueles simbólicos minutos de silêncio, à espera de uma marcha fúnebre. Mas embora as chances da insurreição de Bárbara fossem poucas, era preciso manter os pingos de esperança encharcados para que muitos rostos não se tornassem úmidos mais tarde. Era preciso fingir que os pingos eram de tempestade, e não de garoa.

Todos os exames demandavam de Ana a força e bravura que haviam ido com Bárbara. Eram muitas exigências para uma mulher que havia sido exigida demais quando jovem e que não soube dizer não, apenas sim, a tudo e a todos. Nas condições em que se encontrava até ler seria pedir demais. E para que ela não dissesse mais um sim para o que não podia nem deveria, imediatamente alguém se prontificou a ler os itens impressos no papel com cheiro de hospital. As letras eram minúsculas, praticamente ilegíveis.

Entre os milhares de pontos pretos estava: VOCÊ TEM ALGUM TIPO DE ALERGIA? Lê-se ALERGIA, mas por descuido se leu ALEGRIA. Em seguida, todos em volta começaram a gargalhar, pois todos em volta sabiam que não havia ALEGRIA em Ana. Todos em volta de Ana riram de sua falta de graça. E um desgraçado era alguém em que a graça faltava. Mas Ana não era uma desgraçada, apenas não tinha graça. E até ela mesma sorriu de sua falta de motivos para sorrir. Ana achou graça onde não havia. Ana achou-se sem nem sequer ter achado a graça da Bárbara que havia perdido.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Cubículo

Marta vivia em um apartamento cujas extremidades praticamente não tinham o direito de serem chamadas como tais. Um verdadeiro cubículo, dizia ela. Em momentos de puro nervosismo, Marta exclamava em fúria: CUBÍCULO! Porém, logo percebia que gritos jamais a tirariam de sua estreita realidade. Então suspirava calmamente, como se tentasse apalpar o alívio. E depois de aliviada, Marta pronunciava mais uma vez o polissílabo que havia encontrado para insultar seu lar de uma sílaba só. Porém desta vez dizia cubículo de um modo muito suave, o que de certa forma demonstrava que realmente não estava mais com os nervos à flor da pele. Ela dizia cubículo, mas o dizia sem obedecer as leis que havia aprendido na escola. Dizia-o com uma desobediência irônica. Marta dizia cubículo como uma sobresdrújula. Marta pronunciava cubículo como uma espanhola que aprende "brasileiro".

Marta costumava encher a casa de móveis, alguns sem utilidade e/ou funcionalidade alguma. Chamavam-na até de anormal, louca. Porém, Marta havia feito de sua casa um depósito, pois aprendera que uma casa cheia quando esvaziada, parecia ser bem maior do que realmente era. Marta apreciava alargar seus horizontes e criar eco onde não havia.