Emília Silva é o nome da simpática e carismática senhora que
tive a oportunidade de conhecer durante uma das muitas viagens de ônibus que costumo
fazer a caminho da minha faculdade; sim, é de fato sempre uma longa e, por vezes, cansativa viagem.
Porém, nesse dia minha jornada pendular diária foi (in)felizmente encurtada
e agraciada pela surpreendente e inesquecível companhia da doce dona Emília.
Em geral, diz-se que gentileza gera gentileza (brinco que
gentileza, às vezes, só gera abuso de boa vontade!), mas descobri com dona
Emília que o hábito de ser gentil pode render sim bons amigos
instantâneos e, com surpresa, boas conversas enredadas por poesia popular.
Minha gentileza do dia foi ter oferecido meu assento à dona Emília (o uso da crase reflete a intimidade mútua logo gerada entre nós). Dona Emília agradeceu, sentou-se e, em seguida, começou a revelar certo incômodo; logo imaginei que fosse por conta do calor (São Luís tem se mostrado uma ilha do calor, não do amor!).
Indaguei-lhe então se passava mal, o que ela me respondeu de modo afirmativo.
Porém, acredito que dona Emília estava, em realidade, apenas em busca de uma
palavra amiga para que pudesse, logo após, contar um pouco da sua
história e ler os seus encantadores e nostálgicos poemas.
Em poucos minutos dona Emília sentiu em mim confiança
suficiente para desvelar alguns eventos da sua vida (o que só endossa o uso apropriadíssimo da crase). Soube sobre sua rotina
como estudante, sua consulta médica e até cirurgias vindouras; contou-me ainda sobre sua profissão de
costureira e, o melhor, sobre sua vocação e talento de poetisa.
Quando ela me revelou ser poetisa, minha curiosidade
floresceu, bem como um largo sorriso que não saiu em nenhum momento do meu rosto
atoleimado; logo deixei de imaginar que estava prestes a vivenciar só mais uma
daquelas conversas de ônibus, na qual o meneio constante da cabeça reflete
desconforto e indiferença. Dona Emília era, sem dúvida alguma, uma passageira
incrivelmente especial.
De imediato, perguntei-lhe se costumava andar com algum poema
na bolsa, num caderninho de anotações ou algo do tipo. Dona Emília respondeu
que não, mas, me confortou e afagou o coração quando me disse que poderia
recitar alguns poemas de cabeça. Como demonstração de sua completa lucidez e
desenvoltura, dona Emília dividiu com um estranho conhecido duas
de suas criações poéticas: a primeira delas era sobre o Titanic; e a segunda
sobre sua terra natal, Cururupu, no interior do Maranhão.
Não lembro ao certo dos versos, mas em um deles dona Emília
teceu belas e inesquecíveis reflexões sobre a perda dos sonhos e dinheiro. Com uma voz num tom baixo, como se estivesse me contando um importante segredo, dona Emília declarou que quanto
mais se perde sonhos, mais sonhos se tem; o que já não acontece com o dinheiro, uma vez que vinténs perdidos são somente vinténs perdidos.
Antes de trocarmos telefones (nunca havia dado antes meu telefone a uma mulher) e nos despedirmos, dona Emília fez uma ressalva acerca das verdades tecidas nos versos declamados; revelou-me que ali havia apenas verdades particulares. Eu então, de imediato, também em voz de segredo, a repreendi e disse-lhe que a verdade do poeta era inquestionável; afinal, nela está contida uma evidência vivencial puramente autêntica, mesmo que imaginativa.
Dona Emília se foi, porém não sem antes me surpreender com mais um presente; ela retirou da bolsa duas balas pipper, sabor hortelã - uma para ela e outra para mim. Minha velha amiga dona Emília, com poesia e balas de hortelã - num único dia, ou numa única viagem que tinha tudo para ser apenas mais uma - me permitiu, de e com graça, não só um encontro delicioso com palavras rimadas e repletas de beleza e história, mas também um reencontro aprazível com o sabor sem igual da minha infância.
Muito obrigado pela gentileza, dona Emília.