sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Maca 03

Era mais uma daquelas tardes tumultuadas de visitas em um hospital público da cidade. E das três às quatro da tarde, familiares, amigos e crédulos fieis eram autorizados pela diretoria do hospital a caminhar pelos corredores e procurar por seus irmãos de sangue e de solidariedade, a fim de dar-lhes força e esperança, já que as suas haviam sido enfraquecidas ou expiradas pela não condição de saúde e até mesmo pelo devastador poder dos medicamentos, em especial o dos antibióticos.

Cada paciente, em meio a vivência de sua dor física, psicológica e espiritual, era visitado por até três amigos; amigos que eram mais do que do peito e mais do que qualquer amigo guardado por sete chaves apenas musicais. Porém entre todos aqueles corpos, que diante da doença faziam-se sentir de forma mais evidente - às vezes, até mesmo esquecendo que além do corpo há um universo a ser deslindado -, havia um que, em seu canto de solidão, permaneceu como um secular solitário de pedra preciosa, já sem brilho e com valor relegado. Ele era único e singular; nele de plural só havia o número da maca que ocupava: maca três. E mesmo estando bem próximo da porta por onde os visitantes esperançosos adentravam, não foi visitado pelos seus. Ninguém o visitou, senão os amigos instantâneos da eternidade. Ninguém se lembrou dele, ou ninguém nem sequer havia para tê-lo na lembrança. E amigos e familiares de outros hospitalizados, em excesso de número, e também em um excesso de fraternidade e insensibilidade, diziam astuciosamente conhecê-lo, só para poder entrar no hospital, já que cada paciente estava autorizado a receber somente três visitas por dia.

Mas aquele paciente solitário não se deixou entristecer ou, pelo menos, não permitiu que, quem ao seu redor estivesse, percebesse em seu rosto amarelo e feio as marcas de um possível abatimento. O ar de tranquilidade e calmaria que o olhar e os gestos do ocupante da maca de número 03 transmitiam eram gritantes; tão gritantes que o fato dele ter lanchado duas vezes soou como uma compensação para a ausência de visitas. Era como se a gula, embora pecado capital, fosse a única arma disponível para que ele pudesse mostrar ao mundo o alcance do seu poder.

O horário de visitas chegou ao fim. Os amigos e familiares, com certa relutância, foram deixando aos poucos os quartos e corredores do hospital. Os pacientes, já todos anestesiados, foram paulatinamente sendo aliviados de suas dores, podendo enfim se entregar ao sono e aos sonhos de célere cura. E o paciente faminto, pecador e poderoso - que pela falta de leito permaneceu na maca até receber alta - dava junto aos outros sobreviventes, depois de ter sido o único (talvez em toda a história daquele hospital) a lanchar duas vezes, adeus a mais um dia de luta.

O tumulto então se desfez. O silêncio mais uma vez voltou a reinar. E o paciente não anônimo e de nome apenas desconhecido adormeceu depois de ter tomado dois copos de suco e comido seis bolachas, três doces e três salgadas.

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