segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Antônia

Enquanto outra bonita manhã de sexta-feira nascia no horizonte, Antônia, ainda dentro da fralda já úmida que havia vestido na última noite de sono, abria seus grandes olhos cor de mel, dava um grande salto da cama e ainda meio estremunhada partia cambaleante em busca de uma vassoura que estava atrás da porta da cozinha e que tinha três vezes o seu tamanho.
Toda manhã a jovem criança se aventurava nessa emocionante travessia.
O galo nem havia cantado e sua vó, que dormia cedo e acordava mais cedo ainda, já havia preparado todo o café da manhã e ficava atenta à espera da movimentação feliz e incomum da neta. A correria da menina era o sinal diário de que a vida havia enfim despertado novamente.
Vóvi, como era chamada por todos que a conheciam, gostava de admirar a graça e viço da neta travessa. E, embora se pense o contrário, a velha Vitória não tinha nenhuma vergonha de sua longa idade nem tampouco medo das rugas que podia encontrar sempre que se via ao espelho.
Na verdade, ela tinha pura certeza de que havia vivido de modo bastante intenso, o que dava aos dissabores e agruras da idade um toque todo natural, espontâneo, mas também não a impedia de continuar sendo vaidosa dentro daquilo que a idade lhe permitia. No topo da cabeça, aliás, nunca ninguém notara a ausência de seu primoroso coque que parecia ter sido feito durante cuidadosos milênios.
Quando se deu conta de que Vóvi a divisava, Antônia olhou para a cabeça da avó e mais uma vez se questionou acerca do horário e, sobretudo, tempo que sua querida vó Vitória levava para executar o penteado coquete de todos os dias. Ela acreditava que Vóvi ou dormia em pé ou então passava a noite em claro elaborando o penteado.
Mas não havia muito tempo para perguntas e fantasias. Afinal, a qualquer momento o pai de Antônia apareceria e pediria, como já havia se tornado rotina, que ela voltasse para o quarto e começasse a se arrumar para não chegar atrasada a escola.
Ninguém da casa entendia ao certo por que aquela menina, tão jovem e com tanta vida pela frente, gostava tanto de varrer o salão onde caixões de madeira e de todos os tamanhos ficavam em exposição.
Ao mesmo tempo, todos desconfiavam que Antônia, embora pequena, tinha muita coragem ou talvez nem sequer tivesse conhecimento algum sobre a tenebrosa e atordoante ideia da morte.
Vóvi, pelo menos, como sempre muito surperticiosa, nunca entrava na grande sala. Ela evitava até sair de casa, já que o salão, no qual o empreendimento da família funcionava, também era a porta de entrada e saída residencial.
Apesar disso, a velha Vitória dizia não temer a morte. Ela apenas não queria que seu fim, um dia inevitável a todos como já sabia, fosse, de alguma forma, adiantado pela atmosfera fúnebre comum a toda funerária.
A funerária já pertencia à família há anos. Antes quem a administrava era o avô já falecido de Antônia, homem que quando vivo era famoso por ter sido muito rude e ranzinza, mas, ao mesmo tempo, por guardar dentro do peito um grande e gentil coração. Todos lembravam de seu Gonçalves com imenso e afetuoso carinho.
O empreendimento se chamava Funerária Três Irmãos. E era essa uma evidente demonstração de falta de criatividade justificada pela suposta homenagem aos três filhos de Vóvi com Seu Gonçalves: Pedro, João e Clemente.
Pedro havia saído de casa cedo em busca de uma vida diferente da que levava no interior de Santo Amaro das Águas Claras. Casou-se e vivia a partir de então sob a pressão da expectativa alheia de ter filhos depois do matrimônio.
João também partira para a cidade, mas não com o intuito de granjear vida nova. Ele fora apenas para visitar e acabou ficando, porém pouco se sabia de sua vida não planejada na cidade grande. Especulava-se que João levava uma vida libertina e licenciosa, o que era mero fruto de ignorância sobre os novos modos de vida.
Já Clemente, o pai de Antônia, havia sido escolhido tacitamente para ser o filho da continuidade, aquele responsável pela manutenção da tradição. E Clemente até gostava de onde morava. Achava que tudo de que precisava estava ao seu redor. Repetidas vezes chegou até a repreender os irmãos pelo fato de terem ido embora do lugar ao qual atribuía adjetivações de paraíso.
Clemente era, portanto, o administrador em exercício da Funerária Três Irmãos que, embora não fosse um símbolo do sucesso financeiro da família, não tinha previsão alguma de falência. E o motivo era evidente.
A Funerária Três Irmãos não era muito grande. O salão onde funcionava havia outrora sido apenas uma sala de estar na qual se costumava receber visitas e se sentar aos domingos para ver o povo ir a missa e a praça.
Na administração de Clemente o salão recebeu apenas uma pequena ampliação. Construiu-se um banheiro para uso do próprio administrador, já que poucas pessoas iam até lá. As vendas, poucas, em geral, eram negociadas por telefone, em visitas domiciliares ou dentro do único hospital da cidade.
Os caixões ficavam todos expostos por tamanho e cor, e logo na entrada havia um grande esquife de madeira avermelhada com detalhes em dourado acompanhado por uma guirlanda de flores brancas artificiais e um delicado ornamento pontiagudo de prata.
Ao fundo as paredes eram todas pintadas com uma leve mão de cal branco que, se visto de perto, notava-se que havia sido pigmentando também levemente com uma cor salmão ou laranja débil. O espaço gerava assim em quem o via e por ele passava uma estranha sensação de conforto coadunada com temor e aflição.
E era nesse ambiente, de atmosfera aparentemente avessa à alegria e vivacidade de uma criança, que Antônia todas as manhãs se dirigia e, com uma vassoura, corria em círculos, numa espécie de ritual que envolvia ora um inocente jogo infantil, ora uma tarefa doméstica do dia-a-dia. E ela, embora fizesse tudo isso às pressas devido a já comum repreensão do pai, sempre mantinha um sorriso de satisfação no rosto.
Assim que Clemente entrava no salão e pedia que Antônia deixasse a vassoura e fosse para o quarto se arrumar, ela abandonava sua acompanhante de dança e, ainda correndo, se encaminhava em direção a avó, dava-lhe um molhado beijo no rosto que produzia um estalido agudo e, em seguida, gritava o pai, perguntando onde estava o seu uniforme da escola.
Antônia era a caçula da família. Seu irmão, 10 anos mais velho, era muito introspectivo e passava a maior parte do tempo no computador ou lendo livros sobre ficção científica e fantasia. Vitório, em homenagem à VóVi, vivia em um mundo cuja atmosfera musical girava em torno dos grandes sucessos do rock que haviam embalado a juventude de sua avó. E os fones de ouvido, que eram desproporcionais ao tamanho da sua pequena cabeça, já haviam se tornado uma parte indissociável do corpo dele.
Antonia inclusive, quando via o irmão sem os fones, dobrava o curto pescoço para a direita, como se quisesse tocar o ombro com a orelha gelada, e, com um sorriso inocente no rosto, perguntava ao irmão, com a faceirice natural de uma criança, se era ele mesmo que estava diante dela.
A mãe de Antônia e Vitório, a bela e doce Márcia, já não estava mais entre a família. Ela havia morrido durante o parto de Antônia. Antônia pouco sabia sobre a mãe. Dela só possuía a notícia de que tinha sido muito bonita e de que tinha também se tornado a mais deslumbrante estrela do céu.
Vitório havia presenciado todo o sofrimento da família de maneira parcialmente consciente, uma vez que já tinha idade suficiente para compreender a morte sem eufemismos ou metáforas.
Clemente se fingia de forte, tentava transparecer a todos da família e do pequeno município em que vivia que já havia superado a morte da esposa, mas, no fundo, ele ainda sentia muita falta de Márcia, como mulher e como cúmplice no amor aos filhos.
Márcia era uma mulher doce e, ao mesmo tempo, de pulso firme. A morte, que a levara muito jovem, era algo que nunca ninguém havia imaginado. Nunca ninguém imagina.
Como toda mãe, Márcia vivia incondicionalmente para si e para os dois queridos filhos. Ela havia perdido o direito de morrer.
O luto foi longo e doloroso. E era difícil imaginar como seria a criação da pequena Antônia sem a presença da mãe. Por enquanto, ir aos poucos lhe dizendo que a mãe havia se tornado uma estrela do céu ou um anjo de Deus eram maneiras econômicas de conforto mútuo.
Mas, assim que cresceu e tomou pouco da consciência de si, Antônia se deu conta de que ter se transformado em estrela ou anjo era, na verdade, o que os adultos, apenas entre eles, chamavam de morrer.
Ela também sabia que todas as pessoas que iam até a funerária estavam lá porque de alguma forma já tinham se dado conta do descanso infinito que um dia nos vem, o mesmo descanso ao qual a sua mãe, nas palavras de Vóvi, já havia sido agraciada.
Para abrandar a única certeza da existência vó Vitória sempre se referia à morte de Márcia, sobretudo na presença de Antônia, como um encontro com Deus, em um lugar onde reinava a paz e a tranquilidade.

Ela sabia que Antônia pensava diferente das outras crianças da sua idade e que por isso não acreditaria tão facilmente no que era contado. Mesmo assim Vóvi insistia em tentar convencer a neta daquilo que até ela mesma, pecadora, às vezes desconfiava.

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